Há memórias que são guardadas com certo zelo, que traz um ar saudosista. São lembranças que repercutem de diferentes formas em diferentes corações, mas são sempre recordações preciosas. Ora pela irreverência, ora pela própria história.
E há ambientes que são propícios às grandes nostalgias. Assim é o tempo de escola. A escola insere um contexto social importante e representa muito a infância e a juventude. E foi em um ambiente assim tão favorável em que tudo aconteceu. Faz tempo, muito tempo, foi no século passado, mas foi, mesmo que hoje a gente altere alguns dados, a grande maioria dos acontecimentos ainda vive dentro de cada um de nós. E como vive!
Naquela época estávamos ingressando na quinta série do Ensino Fundamental. As turmas eram denominadas por letras, e a nossa era a derradeira, era a última e foi construída por aqueles que vinham de longe. Não que de fato viéssemos assim de tão distante, mas diante do olhar infante, sim, vínhamos de muito longe. Arrisco afirmar que o local de onde eu vinha era sim o mais longínquo. Eu morava do outro lado da cidade, bem perto da rodovia Presidente Dutra. De tão distante que quase fui considerada de outro Planeta.
Embora haja controvérsias, visto que muitos me achavam extraterrestre por outros motivos, talvez até por motivos diversos. Bom, isto nem vem ao caso. O que importa aqui é exatamente onde tudo começou: o primeiro dia de aula. Agora imaginem um primeiro dia de aula de alunos formados por aqueles que quase foram excluídos. Digo isso porque fazíamos parte da última turma formada, a quinta série E. É bom destacar que quanto mais perto da letra A tanto quanto melhor era considerada a turma.
E, ser a quinta E estava muito longe de ser a melhor turma. Contudo, seria exatamente aquela que antecede todo grande evento. E o ocorrido que foi o primórdio da nossa grande história insere o primeiro dia de aula. Lá estávamos todos nós, em um silêncio embalado pelo medo do novo, do desconhecido, ali ninguém conhecia ninguém, salvo alguns pequenos detalhes, como um sendo irmão do outro, e alguns viverem no mesmo bairro. Quase posso afirmar que de alguma forma já nos sabíamos predestinados uns aos outros.
Sentados, em franca posição, quase militar, aguardávamos a chegada do professor. Heis que entra uma linda professora, tão majestosa, tão elegante, que mais se parecia com a boneca Suzy, hoje seria a Barbie. Ela entra como se desfila em uma passarela e fala conosco de forma tão expressiva que nos deixa encantados, ou seria hipnotizados? Não importa, uma vez que este é apenas um dos muitos detalhes que nossa jornada acolhe em nossas memórias. Delicadamente ela faz a chamada, que sempre é em ordem alfabética, tanto melhor assim, pois assim sendo, há tempo hábil de estudar toda beleza e poder emanado daquele ser denominado professora de Geografia.
Cada nome chamado, a professora lança seu olhar para onde surge a resposta “presente”. Sim, todos que ali estavam eram o presente que registra e marca todos os envolvidos. Esse ritual de conhecimento e identificação estava indo bem, avançava tranquilamente até que suavemente a professora diz ‘Rildo da Silva Rosa’ e uma voz meio entrecortada responde: ”presente”. A professora levanta os olhos do livro de chamadas e orienta se para a voz e encontra uma surpresa tão grandiosa que a deixa em estado alterado.
Tamanho foi o susto daquela professora que não restou se não o disparate de gritar e sair correndo, tão rápido quanto alto foi o seu grito: “Rildooooooooooooooooooooooooooooo...” O assombro daquela bela professora foi tão eloquente quanto foi o nosso espanto. Naquela época não se podia sair da carteira de onde cada um estava sentado, não se podia perguntar o que houve, visto que isso não nos era permitido. Vivíamos em um regime militar, onde o que se fazia ou dizia poderia ser usado contra cada um de nós. De tal feitio que só nos restou arregalar os olhos e aprumar os ouvidos.
Minha curiosidade me fez olhar a figura daquele que foi capaz de fazer a professora sair do salto e cair na correria escadas abaixo. Este estava agarrado à cadeira, como se tentasse não cair desta. Estava tão assustado quanto como conseguiu assustar a professora. Um silêncio perturbador se fez presente e não posso dizer quanto tempo se passou, porém posso afirmar que pareceu ser um longo e eterno tempo, pelo menos o foi para mim. Alguém chegou e retirou o protagonista do destempero da bela professora, meio que este foi resgatado, salvo da fogueira. Logo depois veio uma autoridade, era a Orientadora Escolar, que de voz macia e serena foi explicando o que aconteceu naqueles momentos suspensos.
O aluno Rildo, dizia ela, é um ótimo menino, mas precisa que todos os ajudem a ser mais concentrado e adequado à sala de aula. Quanto à professora, esta, só está um pouco surpresa, ela não esperava encontrar este aluno aqui, pois ele mora muito longe. E foi por ele morar longe daqui que ela escolheu vir para essa escola. Mas agora já está tudo bem, ela entendeu que há alunos que vêm de muito longe mesmo. Assim, de forma suave e delicada foi explicando o ocorrido. Não que houvesse muitos interessados, mas eu estava, eu queria saber e compreender o que acontecia dentro de cada um que estava ali.
Essa minha preocupação em conhecer e entender o que cada um trazia dentro de si vem da minha necessidade de compreender e entender as muitas emoções que viviam e vivem dentro de mim. Eu tenho muitas ideias diferentes, pensamentos incomuns. E por eu ser assim, isto me levava a analisar cada comportamento, cada resposta dada em cada situação inusitada ou não. Porque as nossas vidas eram inusitadas, cada um que ali estava trazia uma marca, um vazio que queria ser preenchido, atendido e compreendido. A vida não era fácil e ainda não é, mesmo porque a vida é tinhosa, ela testa a gente, ela cria desafios, ela exige presença, não só apenas a palavra “presente”. A vida exige comprometimento, exige estar presente em cada momento que ela nos apresenta.
Embora, agora, nesse exato momento, eu esteja revivendo um tempo que há muito já se foi, entretanto, muito ainda se faz presente.
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