Veja bem, já tenho 43 anos, só agora irei formar-me,
ainda não tenho casa própria, carro, tenho carteira, mas medo de dirigir.
Enfim, tenho uma lista de vários fatores
que a sociedade considera importante
e que não alcancei. E daí?
Sinto-me tão importante.
Veja a cena:
Trabalho, melhor, sou estagiária da Secretaria de Ensino a Distância.
Sou tutora do curso de Prevenção ao Uso Indevido de Drogas.
Terça feira será feriado municipal.
Segunda-feira foi considerado ponto facultativo pela faculdade,
portanto, todos os tutores não têm aula, mas temos que trabalhar.
Então assumi a missão de ir até ao diretor pedir para dispensar-nos.
Neste dia fui com uma sandália que não era usada há tempos.
No meio do caminho a sandália desmanchou literalmente.
Por onde eu passava, deixava restos da sandália.
Caminhava com dificuldade, pois ela estava partida em vários tamanhos diferentes. Melhor dizer, mancava. Cheguei, encontrei com a moça do escritório
e perguntei qual era o ramal do diretor; liguei, solicitei audiência.
Pediram para eu aguardar ser chamada.
Neste meio "interim", perguntei a minha supervisora se ela tinha um chinelo,
mas ela não tinha.
Então disse-lhe que iria falar com o diretor.
Levei uma bronca gigantesca por ter passado por cima da autoridade dela,
que eu deveria ter falado com ela antes
para que ela decidisse se eu iria ou não falar com o diretor.
E disse que estava cancelado o meu pedido para tal ousadia.
Meus colegas de tutoria ficaram chocados com o jeito que fui sancionada.
Em seguida a secretária do chefe chega e manda eu acompanhá-la até a direção. Fui, mancando, com a sandália deixando rastros, meio como para dizer,
feito João e Maria qual era o caminho de volta.
Cheguei e falei. Falei e falei, falei tanto
que temo ter cometido erros de Português significativos.
Até contei uma história triste.
No fim explicaram-me o porque de trabalhar na segunda, entendi perfeitamente. Garanti que levaria a mensagem aos meus colegas.
E eles pareceram gostar de mim.
Uma manca estranha, com idéias esquisitas.
Gostaram até da história triste.
Você diria que aquela manca, que nem chinelo tinha,
que foi até a grande chefia clamar por um desejo dos colegas não tem importância? Eu não, diria: "Nossa, que corajosa."
E na verdade, nem sei se tinha coragem na hora,
ou apenas impulso.
Bom, não alcancei a solução desejada, mas todos gostaram da atitude.
O mundo diria que sou apenas uma inconseqüente,
pé descalço e cabeça nas nuvens.
Nem ligo. Faria de novo.
O que eu tinha para perder? Talvez o estágio.
Mas meio difícil dispensarem uma tutora só por causa de um pedido.
E o máximo, receberia um NÃO.
Recebi, nem foi tão ruim assim. No mais, sobrevivi.
A história triste é relacionada ao meu estágio obrigatório.
Escolhi estagiar em uma comunidade carente.
Um povo humilde, mas cheio de lições valiosas para passar-me.
Lá estava eu, observando tudo, ligada a cada detalhe.
Chega uma mãe, descompensada.
Com uma forte emoção sancionava seu filho,
uma criança, com o máximo de doze anos.
Este menino sofreu um acidente grave,
lesionou profundamente seu pé esquerdo.
Quase perdeu o dedão.
Teve que colocar platina, parafuso, levou treze pontos.
Criança, pipa, bicicleta, três fatores importantes.
Viu uma pipa perdida caindo,
decidiu ir atrás, pegou a bicicleta,
pedalou com o olhar para cima, para o céu.
Tinha um forte desejo, um objetivo.
Tomou uma decisão e estava em ação para atingir seu intento.
Um carro, um acidente, um farol quebrado,
uma bicicleta destruída, um pé ferido gravemente
são outros fatores que nortearam a história.
Um hospital, uma cirurgia demorada,
uma mãe angustiada.
Após, uma dor dilacerante,
uma constatação infeliz.
Enfim, não deu certo.
Tudo bem se a história terminasse aqui.
Mas a mãe ficou despreparada para enfrentar a situação de forma produtiva.
Esta mãe e todas as mães e pessoas que têm
um filho doente ou acidentado deveriam ser acolhidas.
Proveniente de uma comunidade carente,
de uma vida carente, de uma vivência difícil,
enfim, esta mãe não tinha recursos emocionais para enfrentar esta adversidade.
Então, lá estava a mãe destilando suas emoções,
com palavras cheias de emoções negativas,
falava com a autoridade, que tem como mãe, fatos do ocorrido.
Rotulava e criticava severamente seu filho.
Diminuía a existência e o potencial daquele que deveria ser seu orgulho.
O menino sentia-se humilhado diante da platéia que se formou ao seu redor.
Imagino que enxergava aquelas outras mães em riste com sua existência.
Fiquei apavorada, senti-me impotente diante de tão cruel cena.
Cruel para todos, não havia algoz, apenas vítimas do despreparo,
da ignorância humana.
Saí, fui até o menino.
O encontrei tão amargurado, tão na defensiva.
Não encontrei palavras.
Minha farmacêutica correu atrás de mim,
acho que teve medo de eu ter uma reação inadequada.
Então ela mostra ao menino uma cicatriz ainda pior do que a dele,
conta-lhe que ela tinha seis parafusos, platina, etc.
Ele sente uma luz,
pergunta se ela sente dor.
Ela assegura que não.
Vi uma luz acender em seus olhinhos,
uma luz de alívio.
Pois sua mãe havia dito com tanto poder que ele sentiria dor o resto da vida.
E ver aquela farmacêutica tão bem e dizendo não sentir dor
foi um bálsamo para a alma daquela criança.
Enfim, parece cruel eu dizer que
bom que a farmacêutica tinha aquela experiência.
Mas foi a dor que um dia ela sentiu que aliviou a dor de um menino.
Concluí:
Devemos cuidar para levar palavras que ajudem
estas mães terem orgulho de seus rebentos.
Devemos cuidar para que nossas crianças tenham auto estima.
Devemos cuidar da criança que mora dentro de cada um
e curar as dores que sofreu enquanto ainda não tínhamos condições para desmentir as bobagens que ouvimos sem precisar.
Devemos ser mais generosos conosco mesmo.
Não devemos nos cobrar em demasia e nem ouvir a mídia,
pois esta apenas quer nos comandar.
Beijos
.
Comentários
Que bom que existe em minha vida!
Beijos
olá
amiga
parece que no final comprova-se o ditado: "a culpa sempre é da mãe"
ai, Deus tem piedade de nós
=D
PS: "Sandália dos seus passos"
:)))))))
Muitíssimo agradeço ao seu carinho e atenção.